Sérgio Rosa e Guilherme Narciso de Lacerda
A pedalada contábil-financeira das Lojas Americanas instiga o aprofundamento do debate sobre o primado da governança corporativa em nosso país. Tais acontecimentos implicam em prejuízos enormes para trabalhadores, clientes, fornecedores, bancos e investidores (especialmente os minoritários). O evento também coloca em questão mais uma vez o arcabouço regulatório e a responsabilidade dos agentes envolvidos.
O debate em torno de conceitos como governança corporativa, responsabilidade socioambiental, compliance, autorregulação, instruções normativas contábeis e outras regras de organização acionária é majoritariamente conduzido pelo conjunto de agentes que opera, dirige e lucra no mercado de capitais. Os agentes públicos ou da academia têm participado menos deste debate. Muitos deles são capturados pelo próprio mercado, uma vez que em diversas instituições os ocupantes foram e poderão voltar a ser participantes dessas rodas da fortuna que se criam em torno das empresas, fundos de investimento e consultorias. Quem, na sua humilde condição de funcionário público ou acadêmico, vai bater de frente com aqueles que figuram na lista da Forbes e são tidos como celebridades?
No Brasil, o poderio das empresas na organização do debate relacionado ao mercado de capitais mostra-se desproporcional. Elas aplicam vultosos recursos na contratação de consultorias, bancas de advogados, criação de associações, seminários e propaganda. Enquanto isso, a sociedade permanece distante deste debate, seja por entendê-lo como um universo próprio dos agentes e da economia privada, seja pela dificuldade de competir e furar o bloqueio de um enorme aparato de “especialistas” incensados e bem remunerados.
No recente caso das Americanas voltam velhos questionamentos. Como os auditores (sempre do primeiro time, das chamadas Big Fours) não viram e não ressalvaram os lançamentos contábeis ao longo dos anos? Os órgãos internos de controle da companhia tiveram conhecimento das práticas contábeis irregulares? Eles foram enganados ou convencidos a acreditar na correção desses lançamentos através de pareceres e reuniões com executivos, consultores e auditores? Quem forneceu os pareceres para sustentar esses arranjos financeiro/contábeis? Quem assumiu/assinou os balanços e as recomendações a serem enviadas para os órgãos corporativos? Quanto a remuneração extraordinária de executivos e conselheiros se beneficiou dessa “maquiagem” dos balanços?
No caso dos bancos credores, também cabem questões. O carregamento de operações de crédito desse tipo não suscitou due diligence mais acurada para avaliar o risco de tais operações? Onde foram alocadas essas operações de crédito: na carteira dos próprios bancos ou em fundos de direitos creditórios?
Vozes isoladas de pessoas e entidades vêm questionando, por anos, o universo corporativo e as ações corretivas ou punitivas dos agentes reguladores, a CVM em particular. Mas pouco se avançou nessa direção. Os analistas de investimentos, infelizmente, tornaram-se parte do problema. Eles trabalham para os bancos ou corretores que distribuem fundos de ações e de investimento para seus clientes. Eles focam nos resultados de curto prazo e não têm condições ou interesse em aprofundar análises sobre a situação das empresas ou dos papéis que estão cobrindo. Por sua vez, os agentes reguladores têm sido generosos em avaliar ou punir os agentes cometedores dos “erros” ou práticas criminosas nas corporações.
No caso das Americanas, parece haver uma grande questão a investigar, envolvendo a responsabilidade dos executivos e conselheiros, inclusive com a suspeita venda de ações antes de o rombo se revelar.
Haverá esta investigação de fato? Terá o agente regulador força e interesse em esclarecer de fato as responsabilidades? Haverá uma mídia especializada que ficará em cima do caso? Há algum tempo alguns fundos de pensão, na qualidade de investidores institucionais e gestores de grandes carteiras, perceberam que precisavam investir em capacidade de análise e de influência junto a este “mercado”. Promoveu-se um amplo debate sobre o exercício de seus direitos como acionistas e o aprimoramento da governança corporativa das empresas, com proteção dos direitos dos minoritários. Também se privilegiou a formação de equipes e ferramentas internas de análise e de gestão de riscos de longo prazo, pois perceberam que seus interesses, horizontes de investimento e responsabilidades se diferenciavam dos demais agentes de mercado.
O movimento daquelas entidades não foi devidamente compreendido, e de alguma forma foi, inclusive, combatido. O “mercado” nunca escondeu seu interesse em poder gerir os bilhões alocados nos fundos de pensão, atualmente ultrapassando a cifra de 1,2 trilhão de reais. Em disputas societárias os seus dirigentes enfrentaram o questionamento do seu direito de participar diretamente da gestão dos seus recursos.
Em um processo menos “fair”, houve um momento em que, ao estilo “Lava Jato”, recorreu-se a uma onda de denúncias e acusações muito mal fundamentadas. Ocorrências ou prejuízos em alguns investimentos passaram a justificar processos gigantescos, com acusações de fraude e gestão temerária a torto e a direito. A maior parte do que ocorreu no período recente mostrou-se muito mais como perseguição e indevida aplicação de “culpa” a operações e gestores que agiram dentro da lei e e dentro das margens de risco inevitáveis para quaisquer investidores.
Acontecimentos graves como o que ora se revela na governança de uma empresa de destaque da Bolsa de Valores poderiam ter sido evitados se houvesse um debate mais transparente entre os conselheiros dos grupos relevantes de investidores e se, evidentemente, o Brasil contasse com um aparato regulatório mais eficaz. Portanto, é do interesse público acompanhar o ruidoso caso, assim como é necessário aprofundar o debate geral acerca do mercado de capitais e do papel dos seus principais agentes.
Sérgio Rosa
Ex-presidente da Previ entre 2003 e 2010 e fundador e ex-membro do Conselho do PRI (Programa para Investimentos Responsáveis/ONU)
Guilherme Narciso de Lacerda
Doutor em Economia pela Unicamp. Foi presidente da Funcef de 2003 a 2010 e Diretor do BNDES entre 2012 e 2014
(Publicado originalmente na revista Carta Capital)
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