Por Ricardo Pena*
Os artigos 11 e 15 da LC 108, de 2001, preveem na composição dos órgãos de administração e controle das EFPC uma paridade de representação entre os participantes e patrocinadores além da figura do chamado voto de qualidade no processo de tomada de decisões.
O §6º do art. 202 da CF, inserido pela EC nº 20, de 1998, somente exigiu que a Lei Complementar disciplinasse a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão das EFPC em que seus interesses fossem objeto de discussão.
Pois bem, no item 9 da EM/Exposição de Motivos nº 30, de 15/março/1999, o Poder Executivo Federal à época ao enviar o PLP nº 8, de 2019, justificou a criação do voto “adicional” de qualidade do presidente do Colegiado com o objetivo de manter o equilíbrio entre os responsáveis pelo aporte de recursos ao plano previdenciário e ao mesmo tempo, impedir eventuais impasses na administração e solução dos problemas gerenciais da Entidade.
Assim, pôde-se entender que a LC nº 108/2001 não tornou a votação (de desempate) um expediente obrigatório de deliberação para superar os impasses nos Conselhos dos fundos de pensão, mas uma opção de solução. Entretanto não é isso que se tem visto desde então.
O voto de qualidade ou voto de decisão deveria ser exceção e não a regra nos Colegiados das EFPC. Mas não é essa a prática corrente dentro dos fundos de pensão no País. Decorridos mais de 20 anos da LC 108, os impasses se acirraram e as soluções pacificadoras não vieram com o voto de desempate, voto duplo, voto de qualidade ou voto de minerva dentro das EFPC.
Assim cabem algumas perguntas: o voto de qualidade é mesmo necessário? Como não deveria haver hierarquia nos Colegiados, quando o presidente se vale do voto duplo de desempate podemos inferir que a governança não anda bem e temos sinais de problemas na EFPC?
A diversidade de visão e as divergências de opiniões são salutares, bem-vindas e podem enriquecer a gestão da EFPC, que devem ser estimuladas antes que se constituam conflitos (às vezes até judiciais) que possam comprometer o clima organizacional, expor a Entidade a riscos de imagem e credibilidade além de fragilizar a operação dos planos de benefícios.
A preocupação original do voto de qualidade já não se aplica ao ambiente do regime de previdência complementar, uma vez que atualmente já não são criados planos BD/Benefício Definido, mas somente planos CD/Contribuição Definida, sem qualquer impacto ou custo financeiro adicional ao patrocinadores, como se apregoou dentro do sistema previdência brasileiro desde a EC/Emenda Constitucional nº 41, de 2003, e dessa forma a assumpção dos riscos financeiros (não rentabilização das contribuições mensais e reservas individuais acumuladas) e dos riscos previdenciários (invalidez, morte e sobrevivência) tem sido de inteira responsabilidade dos participantes e assistidos, ficando anacrônico assim atribuir o voto de qualidade para o representante dos patrocinadores dentro dos Colegiados das EFPC.
Manter o voto de qualidade nos planos de contribuição definida administrados pelas EFPC é deixar o empregador decidir sobre o futuro da conta individual de aposentadoria dos participantes dentro do plano de benefícios, o que já não faz nenhum sentido. Na verdade, se fosse para perdurar esse mecanismo de solução de conflitos deveria se atribuir o voto de desempate para a representação dos participantes e assistidos dentro das EFPC, sobretudo aquelas que administram planos para os servidores públicos, até porque hoje em dia, com os perfis de investimentos e o regime tributário, cabe aos participantes a escolha do seu portfólio de investimentos durante a fase de acumulação em função do seu perfil de risco.
A experiência internacional tem mostrado outras soluções[1] diferentes para eventuais conflitos da opção restrita pelo voto de qualidade que possam conduzir ao melhor processo decisório dentro da EFPC: (i) estabelecer o voto de maioria absoluta (quórum qualificado) para determinados temas dentro dos fundos de pensão (como já ocorre aqui no Brasil pelo art. 38 da Resolução CNPC nº 30/2018); (ii) exigir a abertura de uma negociação (talvez com um comitê específico com tempo determinado), em regime de melhores esforços, entre os patrocinadores e participantes a partir da configuração de conflito; (iii) declaração de abstenção de voto de qualidade quando estiver configurado o conflito de interesse do Conselheiro (em relação ao interesse do patrocinador); e (iv) a definição de códigos de conduta contra a parcialidade e os conflitos de interesse[2] com dispositivos de solução de problemas de governança.
No Brasil, o órgão fiscalizador e licenciador prévio do regime de previdência complementar agiu, nos últimos anos, de forma ambígua. Aprovou alterações nos Estatutos de algumas EFPC permitindo outros dispositivos de solução de conflito, e depois de 2019, tem voltado atrás e imposto a revisão estatutária das EFPC reestabelecendo o voto de qualidade pelo menos para as sete matérias indicadas no art. 13 da LC nº 108, de 2001, que tratam da política geral de administração da Entidade, da alteração do Estatuto e Regulamentos dos planos de benefícios, bem como da implantação e da extinção dos planos e da retirada de patrocinador, da política de investimentos e aplicações financeiras superior a cinco por cento dos recursos garantidores, da contratação de auditor independente e atuário, da nomeação e exoneração dos membros da diretoria-executiva.
Essa prática de votar duas vezes sempre ocorreu em autarquias públicas, sendo o voto considerado um ato administrativo. Recentemente a Lei nº 13.988, de 2020, por iniciativa do Congresso Nacional (durante a conversão em lei da MP/Medida Provisória nº 899/2019), e validado pelo STF no julgamento das ADI’s nºs 6.399, 6.403 e 6.415, acabou, depois de 50 anos (prevista no Decreto-Lei nº 70.235, de 1972), com o voto de qualidade no CARF/Conselho Administrativo de Recursos Fiscais da RFB/Receita Federal do Brasil. Uma decisão importante que pode influenciar outras esferas regulatórias com aplicação legislativa, como a previdência complementar.
Por isso o PLP/Projeto de Lei Complementar nº 84, de 2015, em tramitação na Câmara dos Deputados, possa ser um caminho para aperfeiçoar e avançar a governança dos planos previdenciários administrados pelas EFPC, num cenário concorrencial trazido pela EC nº 103, de 2019.
* Ricardo Pena é economista com pós-graduação em Atuária e Finanças pela FIPECAFI/FEA/USP e doutor em Demografia pelo CEDEPLAR/UFMG. É auditor-fiscal da RFB/ME. Foi diretor de investimentos e Secretário de Previdência Complementar na SPC/MPS (mai/2004 a nov/2009). Foi o primeiro Diretor-Superintendente da PREVIC (dez/2009 a mar/2011) e o primeiro Diretor-Presidente da Funpresp-Exe (dez/2012-jan/2022). É autor do livro “A demografia dos fundos de pensão”, da coleção MPS, 2007.
(Artigo publicando originalmente no site da Anapar)
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